No dia 17 de dezembro de 2024, a Elsevier, editora acadêmica holandesa que publica a revista científica International Journal of Antimicrobial Agents (além de vários outros periódicos), anunciou a retratação de um estudo de março de 2020. Na prática, isso é o equivalente a “despublicar” o artigo, admitindo erros graves na metodologia da pesquisa. A partir da retratação, os argumentos e provas apresentados no artigo deixam de ter validade científica.
Você já ouviu falar nesse estudo em questão, mesmo que indiretamente: foi ele que defendeu, pela primeira vez, o uso da hidroxicloroquina como tratamento para Covid-19, ainda em março de 2020. Segundo o artigo, o medicamento seria eficaz em reduzir a carga viral da infecção.
Apesar de ter alimentado controvérsias e teorias da conspiração durante quase cinco anos, o questionamento que motivou a retratação do artigo começou com três dos autores da própria pesquisa. Johan Courjon, Valérie Giordanengo e Stéphane Honoré procuraram a Elsevier para que os seus nomes fossem retirados do estudo, alegando preocupações com a metodologia que eles não estavam cientes no momento da publicação.
Uma longa investigação foi realizada pela equipe de integridade de pesquisa e ética de publicação da editora, em conjunto com a Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana, instituição que é co-proprietária da revista, e um médico especialista imparcial. No relatório da retratação, eles informaram que encontraram vários problemas no estudo.
Antes de entender os problemas, um breve panorama: a pesquisa estudou 36 pacientes hospitalizados com Covid-19 em Marselha e em Nice, no sul da França. Catorze receberam só hidroxicloroquina, enquanto outros seis receberam também azitromicina. Um grupo de 16 pacientes formou o grupo de controle, que não recebeu nenhum dos medicamentos.
Os resultados foram medidos por meio de exames PCR com amostras coletadas na garganta. Ao fim de seis dias de infecção, 14 dos 20 pacientes tratados com hidroxicloroquina tiveram resultados negativos para Covid-19, enquanto apenas 2 dos 16 pacientes do grupo controle tiveram o mesmo resultado. O efeito teria sido mais forte naqueles que também estavam recebendo azitromicina, em que 6 de 6 tiveram swabs negativos no sexto dia. Segundo o artigo, os números mostrariam que o medicamento funcionava.
Entenda os principais pontos problemáticos do artigo que defendia a hidroxicloroquina para tratar Covid-19:
- Aprovação dos comitês de ética: Não foi possível confirmar se os pacientes do estudo passaram pelas etapas de aprovação ética antes do estudo começar. O artigo é impreciso nas datas.
- Data de inclusão dos pacientes no estudo: além de alguns terem sido incluídos na pesquisa sem a aprovação do comitê de ética, a investigação não conseguiu constatar se todos os pacientes foram inscritos no estudo no momento em que entraram no hospital, ou se já estavam hospitalizados há algum tempo quando iniciaram o tratamento descrito no artigo.
- Consentimento para receber azitromicina: Alguns participantes receberam azitromicina como parte do estudo, sob a alegação de que este seria o tratamento padrão contra infecções bacterianas que acompanham uma pneumonia viral. Mas esse não era o caso: a revista comprovou que o combo não era um tratamento padrão no sul da França naquela época. Os pacientes deveriam ter concedido um consentimento informado sobre esse tratamento. Isso significa que eles precisariam ter sido informados dos potenciais riscos e vantagens e concordado com a inclusão da azitromicina.
- Metodologia para aplicar azitromicina: Além disso, a azitromicina só foi aplicada em pacientes que já haviam recebido a hidroxicloroquina, e não foi utilizada em nenhum paciente do grupo de controle.
- Equipoise: Essa palavra chique representa um grande dilema da ética na medicina. Na teoria, equipoise é o estado de incerteza genuína por parte do investigador clínico em relação aos méritos terapêuticos comparativos de cada tratamento de um estudo. Se um pesquisador descobrir que um dos tratamentos tem mérito terapêutico superior, ele é eticamente obrigado a oferecer esse tratamento. Por causa das dúvidas sobre consentimento esclarecido e metodologia, o relatório da Elsevier aponta que “a revista não conseguiu estabelecer se houve equipoise entre os pacientes do estudo e os pacientes de controle.”
- Exclusão de pacientes com efeitos colaterais graves: O principal problema do artigo. Seis pacientes foram excluídos dos resultados finais: um morreu de Covid-19 no meio do estudo, três tiveram que ir para a UTI para sobreviver, um abandonou o uso dos medicamentos por sentir efeitos colaterais, e o último decidiu deixar o hospital. Em vez de descrever esses fatos no estudo, os participantes foram excluídos e seus resultados, desconsiderados, o que enviesou a conclusão. Apesar de não ter sido mencionado no relatório da retratação, esse foi um aspecto muito polêmico da pesquisa, muito criticado por outros cientistas logo de cara. Em uma carta de 2021, os autores do estudo concordam que a exclusão dos resultados foi um erro, mas seguem defendendo o uso da cloroquina.
- Interpretação dos resultados: um dos autores afirmou que os testes realizados em Nice e em Marselha foram interpretados a partir de diferentes recomendações e valores de referência. Enquanto os de Nice teriam seguido as referências nacionais, não há certeza sobre os de Marselha, onde a maioria dos pacientes estava. O artigo não é explícito sobre qual foi a metodologia utilizada para interpretar o PCR.
Durante a investigação, o autor principal do artigo, Didier Raoult, foi procurado e nunca respondeu à equipe sobre as preocupações metodológicas. Esse é o 28º artigo de Raoult a ser retratado. Cinco dos dezoito autores do artigo discordam da retratação e contestam os seus fundamentos. De acordo com a Nature, o estudo é o artigo mais citado sobre a Covid-19 a ser retratado, bem como o segundo artigo retratado mais citado da história.
O impacto do artigo no Brasil
Após a publicação desse artigo, a classe médica mundial se dividiu, mas a cloroquina começou a ganhar apoio de políticos como os ex-presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro. Alguns profissionais passaram a prescrever o medicamento para a Covid-19. Tanto a hidroxicloroquina como a sua prima, cloroquina, eram originalmente utilizadas para malária, lúpus e artrite reumatoide.
Mesmo antes da retratação do artigo, muitas organizações científicas já haviam questionado a validade dos resultados, que não se repetiram quando foram testados em vários outros experimentos “padrão-ouro” – ou seja, com metodologias mais reforçadas e replicáveis.
O que acontecia, então, era o uso off label, ou seja, a prescrição do medicamento para um uso que não tem previsão na bula do remédio. Para que a indicação para Covid constasse na bula brasileira, seria necessário um processo de aprovação por parte da Anvisa, a partir de dados científicos robustos. Esse processo nunca aconteceu, mas em 2020 a Anvisa autorizou que o remédio fosse receitado “a critério médico”.
Esse critério médico era bem influenciado pela política: entre março de 2020 e janeiro de 2021, o governo federal emitiu ao menos quatro medidas promovendo diretamente ou facilitando a prescrição do medicamento, segundo a 10ª edição do boletim Direitos na Pandemia, feito por pesquisadores do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP (Cepedisa) em parceria com a Conectas Direitos Humanos.
Em maio de 2020, por exemplo, o Ministério da Saúde passou a recomendar o uso da cloroquina em todos os casos de Covid-19. O então presidente Jair Bolsonaro foi uma peça importante da campanha, e reiterava constantemente que ele e sua equipe de ministros estavam se previnindo e se tratando com o medicamento.
Por exemplo, em 13 de agosto de 2020, semana em que o país registrou a marca de 100 mil mortos por Covid-19, o presidente Bolsonaro declarou: “Eu sou a prova viva de que [a cloroquina] deu certo. Muitos médicos defendem esse tratamento. Sabemos que mais de 100 mil pessoas morreram no Brasil. Caso tivessem sido tratadas lá atrás com esse medicamento, poderiam essas vidas [sic] terem sido evitadas”.
Em janeiro de 2021, na gestão do ministro Eduardo Pazuello, o Ministério lançou o aplicativo TrateCov, que sugeria a médicos a prescrição de drogas como hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina e azitromicina para pacientes com Covid-19. Ao ser questionado sobre o app na CPI da Covid, em maio de 2021, Pazuello afirmou que o programa, que foi amplamente divulgado pelo governo federal, foi “hackeado e lançado por um hacker”.
Mais tarde, em dezembro de 2021, a Comissão de Incorporação de Tecnologia ao Sistema Único de Saúde (Conitec) do Ministério da Saúde rejeitou a incorporação do “kit covid” ao SUS para tratamento precoce da doença, já que não há evidência que mostre qualquer benefício clínico.
Após a retratação do estudo, a Sociedade Francesa de Farmacologia e Terapêutica (SFPT) emitiu uma declaração, dizendo que o estudo “constitui um exemplo claro de má conduta científica, marcada pela manipulação de dados e viés na interpretação dos resultados, com o objetivo de apresentar falsamente a hidroxicloroquina como eficaz”.
“Esse estudo altamente controverso foi a pedra angular de um escândalo global. A promoção de seus resultados levou à prescrição excessiva de hidroxicloroquina a milhões de pacientes, resultando em riscos desnecessários para milhões de pessoas e, potencialmente, em milhares de mortes evitáveis… Um dos princípios fundamentais da medicina – primum non nocere (‘primeiro, não causar danos’) – foi sacrificado aqui, com consequências dramáticas”, diz o texto da SFPT.
Fonte: abril