Este é o 30º texto do blog Deriva Continental
O que são os crátons?
Neste exato momento, você está pisando na litosfera, que é o revestimento sólido do nosso planeta formado por um conjunto de placas rígidas e elásticas de aproximadamente 100 km de espessura. As placas litosféricas estão em constante deslocamento sobre o material viscoso do manto terrestre denominado astenosfera, e quase todas elas possuem uma parte oceânica e outra continental.
A litosfera oceânica renova-se o tempo todo. Ela é gerada nas dorsais oceânicas a partir de material fundido vindo do manto. Expande-se, então, progressivamente até ao manto retornar por afundamento (subducção) ao longo das fossas abissais. Por ser constituída por rochas que, em conjunto, são menos densas que o manto, a litosfera continental não pode submergir no manto. Por esta razão, os continentes não se renovam como acontece com o assoalho dos oceanos. Permanecem em deriva pelo globo, desde que começaram a se individualizar na Terra primitiva, há aproximadamente 4,2 bilhões de anos.
Na sua longa jornada, os continentes ora se fragmentam, ora se aglutinam e, em pelo menos três momentos de sua história, reuniram-se em terras contínuas, os supercontinentes. Tanto as fragmentações quanto as aglutinações introduzem grandes modificações na sua estrutura e geram condições para formação de novas rochas e transformação das que já existem. As fragmentações resultam do estiramento, afinamento e ruptura da litosfera, processos que se iniciam com a formação de grandes depressões (as bacias sedimentares) e terminam em novos oceanos. As aglutinações, por outro lado, envolvem colisões, compressão e espessamento da litosfera, processos que levam à formação de cadeias de montanhas e novos continentes. Em função disso, o estudo da constituição e estrutura dos continentes possibilita aos geólogos identificar e discriminar as inúmeras cicatrizes neles deixadas pelos eventos de estiramento e choques que vivenciaram na sua viagem pelo globo.
Ao final do século 19 e ainda nos primórdios da investigação dos continentes de uma perspectiva geral e integradora, o geocientista austríaco Eduard Suess (1831-1914) fez uma notável observação. Ele verificou que uma vasta região do leste europeu, apesar de constituída por rochas muito antigas, não mostrava quaisquer sinais das grandes deformações que deram origem às cadeias de montanhas que a circundam. Concluiu, então, estar diante uma região dotada de longa estabilidade geológica e chamou-a de Plataforma Russa. Com o passar do tempo, chegou-se à conclusão de que todos os continentes possuem setores que, assim como a Plataforma Russa, quase nada sofreram durante as colisões nas quais se envolveram no último bilhão de anos – ou até mais do que isto. Essas partes antigas e estáveis dos continentes recebem o nome de cráton, palavra do grego que significa poder e resistência. A Plataforma Russa é hoje conhecida como Cráton do Leste Europeu.
Crátons como partes diferenciadas da litosfera continental
Com contornos irregulares, os crátons possuem dimensões variáveis entre centenas e milhares de quilômetros. São limitados por cadeias de montanhas mais jovens que 500 milhões de anos e correspondem a terras baixas com relevo interno pouco pronunciado, nas quais se instalam grandes redes hidrográficas. Por esta razão, muitos crátons receberam os nomes dos grandes rios que abrigam.
O substrato dos crátons, na maioria dos casos formado por rochas mais velhas que 1 bilhão de anos, pode estar parcial ou totalmente coberto por bacias sedimentares de várias idades e dimensões. Nas áreas onde o substrato encontra-se exposto, identificam-se núcleos constituídos por rochas mais velhas que 2,5 bilhões de anos e que permaneceram intactos desde então. Conhecidos como núcleos arqueanos, eles podem ser entendidos como crátons dentro de crátons.
Desde que se individualizou, a Terra resfria-se continuamente. Medidas do fluxo de calor emanado do interior do planeta mostram que os crátons são as porções mais frias da litosfera. Por outro lado, determinações da espessura da litosfera revelaram aquele que pode ser entendido como o traço mais marcante dos crátons: os valores encontrados sob os seus núcleos arqueanos chegam a superar os 400 km, valor muito superior à média característica da litosfera, que é de 100 km. Por esta razão, diz-se que os crátons possuem profundas raízes ou quilhas litosféricas. Em conjunto, estes atributos conferem à litosfera cratônica grande resistência mecânica e resultam em um comportamento diferenciado durante os processos de fragmentação e colisão.
Esse comportamento é ilustrado pela colisão entre a Índia e a Eurásia, iniciada por volta de 55 milhões de anos atrás. O continente indiano é essencialmente um cráton, o Cráton Dharwar. A Eurásia, embora possua alguns crátons, como os do Leste Europeu, do Norte e do Sul da China e o Siberiano, é de resto formada por terrenos jovens não cratônicos. O resultado desta colisão é que a pequena, mas cratônica Índia praticamente nada sofre, ao passo que a grande Eurásia é intensamente deformada.
Além de preservar rochas e estruturas geológicas muito antigas, várias delas não mais produzidas pelo engenho terrestre, os crátons abrigam grandes depósitos de minérios, dentre eles os de ferro, manganês, ouro, crômio, cobre, níquel, urânio, chumbo e zinco. Além disso, estão situadas nos crátons as mais ricas províncias minerais do mundo. (Províncias minerais são regiões que concentram grandes volumes de um ou mais de um bem mineral).
A estabilidade dos crátons não só permitiu a preservação de grandes depósitos minerais nas porções superiores da litosfera, mas também armazenou bens minerais nas suas profundas raízes. Trata-se dos diamantes, formados no manto há mais de 2,5 bilhões de anos sob pressões muito altas. Eles ficam guardados nas raízes dos crátons à espera de um veículo que os leve até a superfície. E estes veículos existem. São fusões de materiais da astenosfera conhecidos como magmas kimberlíticos, que capturam diamantes e chegam rapidamente à superfície na forma de vulcanismo explosivo. Estas fusões são produzidas após eventos de fragmentação continental, os quais geram grandes transformações na estrutura do manto e da litosfera.
Crátons da América do Sul
O continente sul-americano compõe-se de um grande bloco pré-cambriano e de terrenos mais jovens a ele adicionados, os quais formam a Patagônia e a grande Cordilheira dos Andes, esta ainda em atividade. O bloco pré-cambriano, conhecido como Plataforma Sul-Americana, é constituído por rochas com idades superiores a 540 milhões de anos e parcialmente coberto por bacias sedimentares.
Discriminam-se na Plataforma Sul-Americana dois tipos de terrenos: os sistemas orogênicos brasilianos e os crátons. Os primeiros correspondem a cadeias de montanhas antigas, formadas entre 630 e 520 milhões atrás, pela aglutinação de várias placas continentais. Esse processo resultou na formação de um grande continente, o Gondwana, que mais tarde se incorporou à Pangeia, o último supercontinente. As partes interiores das placas colidentes que saíram ilesas deste processo correspondem aos crátons, que são o Amazônico, o de São Luiz, o do São Francisco, o do Paranapanema e o do Rio de la Plata, contidos, em sua maior parte, no território brasileiro.
Os pequenos crátons Paranapanema e Rio de la Plata foram delimitados por meios indiretos, uma vez que estão cobertos por bacias sedimentares. O grande Cráton Amazônico é também pouco conhecido, com apenas algumas áreas investigadas em maior detalhe, dentre elas o seu núcleo arqueano, onde se situa a Província Mineral de Carajás.
Os crátons de São Luís e do São Francisco possuem algo em comum: representam pequenas partes de indivíduos bem maiores que se encontram no continente africano. No período Cretáceo, há 120 milhões de anos atrás, a porção ocidental do Gondwana desmembrou-se em América do Sul e África. Neste processo, duas grandes massas cratônicas, São Francisco-Congo e África Ocidental-São Luiz, foram rompidas para dar origem ao Oceano Atlântico.
Devido a sua localização, riqueza em bens minerais, qualidade das exposições e importância geológica dos seus constituintes, o Cráton do São Francisco tornou-se o mais bem conhecido dentre blocos estáveis da América do Sul. Laboratório natural de instituições de pesquisa e alvo de vários programas de exploração mineral, ele abarca boa parte da Província Mineral do Quadrilátero Ferrífero – famosa por suas jazidas minérios de ferro e ouro, e por corresponder ao coração do Território das Minas do período colonial.
O significado dos crátons para ciência
O conhecimento que temos sobre a Terra e sua história provém, em última análise, da leitura de rochas, que é a especialidade dos geólogos. Os processos que levam à formação de uma dada rocha deixam nela suas marcas. Identificando-as, os geólogos conseguem retornar aos processos que lhes deram origem. Assim, procedendo para grandes conjuntos de rochas de idades conhecidas, eles reconstroem a história de regiões e de grandes edificações do nosso planeta.
Os crátons, por armazenar rochas muito velhas com suas características originais preservadas, funcionam para a ciência como grandes arquivos de informação sobre a Terra antiga. E mais do que isto. Eles também registram informações sobre a história mais recente dos continentes nos quais se encontram, especialmente sobre os as colisões e fragmentações por que passaram. Mas, se os crátons são peças resistentes, como isto é possível? Por duas razões. A primeira delas é pelo fato de que, embora resistentes, os crátons não são indeformáveis. Durante processos de colisão e fragmentação continental, eles tendem a absorver de forma concentrada as forças atuantes nestes processos, as quais dão origem a estruturas de expressão apenas local, mas que podem ser identificadas e datadas. A segunda é o fato de constituírem áreas rebaixadas dos continentes, que funcionam como bacias receptoras de sedimentos no curso dos mesmos processos e, assim, registrá-los nas camadas depositadas. Diante de tudo isto pode-se dizer que, em conjunto, os crátons constituem o repositório principal da memória do nosso planeta. Como a Terra é uma nave, os crátons podem ser entendidos como sua caixa-preta.
Referências bibliográficas
Alkmim, F. F. 2004. O que faz de um cráton um cráton ? O Cráton do São Francisco e as revelações almeidianas ao delimitá-lo. In: Mantesso-Neto, V.; Bartorelli; A.; Carneiro, C.D.R.; Brito Neves, B.B. (eds) Geologia do Continente Sul-Americano. Evolução da obra de Fernando Marques de Almeida, Editora Beca, p. 17-35.
Alkmim, F.F. and Reis, H.L.S. 2020. Brazil and Guianas. Encyclopedia of Geology. Elsevier, 2nd Edition, p.1-20. Doi: 10.1016/B978-0-12-409548-9.12484-4
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Fonte: abril