A Amazônia tem 27% de seu território pertencente a mais de 410 grupos indígenas. Essas comunidades habitam a região há milhares de anos – mas, mesmo assim, são poucos os projetos de conservação liderados a partir da visão desses povos. Um artigo publicado ontem (12) na revista Science, escrito por grupos indígenas brasileiros, propõe novas abordagens para preservar a floresta.
O artigo é uma colaboração entre pesquisadores indígenas de vários povos da região do Alto Rio Negro, no Amazonas: os Ʉtãpinopona/Tuyuka, Yepamahsã/Tukano, Wa’î pino pona/Bará, Medzeniakonai/Baniwa e Sateré-Mawé e sugere um novo olhar para como a ciência da preservação deve andar lado a lado com as tradições indígenas milenares.
A ciência ocidental por muito tempo negligenciou o conhecimento indígena. Foi só nos últimos 40 anos que os laços entre pesquisadores da academia e povos originários começaram a se estreitar, principalmente quando o assunto é conservação. Estudos mostram que territórios indígenas são responsáveis por preservar até um terço das terras naturais restantes, sem falar no papel de proteger espécies em extinção.
O artigo cita o Painel Científico para a Amazônia (SPA), composto por mais de 240 cientistas de 40 países, como tendo realizado “realizou a maior avaliação científica da região até o momento, em diálogo com comunidades indígenas e outras comunidades locais”. “Em linha com a Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, a SPA estabeleceu estratégias para garantir que a região se torne ecologicamente saudável, socialmente justa, culturalmente inclusiva e economicamente viável”, escrevem os autores.
Contudo, apesar de abordagens mais inclusivas como essa, ainda predomina uma visão utilitarista da natureza, que transforma ecossistemas nativos em terras agrícolas e industriais. 30% da madeira amazônica, por exemplo, é explorada de forma ilegal.
“Estratégias de conservação baseadas nas visões ocidentais, como as áreas estritamente protegidas, frequentemente excluem ou deslocam povos indígenas de seus territórios, tratando a biodiversidade apenas como um conjunto de recursos a ser gerido”, pontua o artigo.
Quando a legislação de conservação proíbe o uso de espécies ou locais culturalmente importantes, isso isola os povos indígenas de seus territórios, criando uma “armadilha do conhecimento” que limita o engajamento dos indígenas com o ambiente e reduz a eficácia das estratégias de conservação a longo prazo.
O que fazer, então?
Os pesquisadores definem que as práticas das comunidades ao longo do ano seguem os ritmos da Terra para manter o equilíbrio do mundo, interagindo com três domínios habitados por diferentes espécies: o aéreo (clima e constelações), o terrestre (solo e floresta) e o aquático (que inclui o subaquático).
Nessa visão, os humanos ocupam o domínio terrestre e desenvolvem relações sociais e ecológicas com todos os participantes do ecossistema, incluindo “outros-humanos”, animais, plantas, montanhas e rios. Os “outros-humanos” (ou waimahsã, em Tukano) possuem as mesmas qualidades dos humanos, mas são divindades espirituais, só vistas por xamãs ou em sonhos, e habitam todos os domínios, protegendo os locais onde todos os seres vivem.
Por isso, a manutenção das relações entre todos os participantes do ecossistema é essencial para a saúde do sistema terrestre.
Embora os ecossistemas amazônicos sejam frequentemente vistos como estáticos, os povos indígenas desenvolvem inovações e explorações sustentáveis por meio de transformações contínuas para a sobrevivência. Por exemplo, os caminhos usados por grupos em atividades diárias, como caça, são os mesmos usados pelos animais, pelo vento e pela água.
Outros exemplos citados no artigo são do manejo de florestas culturais, do uso da Terra Preta – um solo altamente fértil – , agroflorestas e diversificação de cultivos. Essas práticas, que não são totalmente integradas às abordagens convencionais de conservação, moldaram os ecossistemas amazônicos ao longo de milênios.
“As comunidades científicas precisam estabelecer procedimentos para uma colaboração transdisciplinar e intercultural, integrando as práticas e conhecimentos indígenas para melhorar a pesquisa, políticas e ações de conservação”, escrevem os autores.
Como preservar?
Os cientistas apresentam três princípios indígenas para criar a ponte entre conservação e restauração.
O primeiro é o reconhecimento de que uma rede cosmopolítica envolve relações de parentesco, comunicação e troca entre humanos e outros seres do ecossistema. Ou seja, humanos, animais, plantas e elementos naturais estão interconectados, dependem uns dos outros.
O segundo ponto envolve reconhecer as práticas indígenas e as restrições necessárias para manter essa rede em funcionamento. E por fim, os cientistas explicam que a compreensão de que as redes são circulares e seguem o ritmo da Terra deve ser levada em consideração. O estudo sugere que, dessa forma, poderiam ser evitados problemas desde o desmatamento desenfreado até as queimadas da região.
“Os conhecimentos indígenas não são dogmáticos e devem ser levados a sério na busca por um futuro sustentável”, afirmam os autores.
Ao adotar esses princípios, é possível promover a colaboração entre os conhecimentos ocidentais e indígenas, integrando-os em pesquisas e políticas para criar novas questões, conceitos e métodos em conservação e restauração. E, por mais que este recorte seja particularmente aplicável aos territórios indígenas, suas teorias podem ser aplicadas em diversos contextos para a preservação de ecossistemas.
Fonte: abril