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Ciência & Saúde

A pseudociência: investigando a psicanálise

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*Daniel Gontijo é doutor em neurociências pela UFMG, fundador do Instituto Ponto Azul (IPA) e membro da Associação Brasileira de Psicologia Baseada em Evidências (ABPBE).

“O inconsciente existe, mas a psicanálise é uma pseudociência.” Embora essa afirmação pareça incoerente à primeira vista, muitos filósofos e teóricos da psicologia a emitiriam sem pestanejar. Seria mais ou menos dizer que estrelas e planetas existem, mas a Astrologia passa longe de ser uma ciência.

Por um lado, estudos científicos vêm corroborando a tese de que vários processos neuropsicológicos ocorrem sem que os percebamos. Experiências conscientes como sentimentos, decisões e lembranças seriam continuamente sustentadas e moduladas por operações automáticas e ocultas do cérebro. Na verdade, essa premissa sequer é questionada pelos neurocientistas. Ponto para Sigmund Freud.

Por outro lado, os conteúdos, os mecanismos e os efeitos desse inconsciente neuropsicológico não se assemelham muito às especulações freudianas. Essa é a avaliação do escritor de divulgação científica Leonard Mlodinow, por exemplo, para quem “as forças internas do novo inconsciente têm pouco a ver com as motivações inatas descritas por Freud”, entre as quais “o desejo dos garotos de matar o pai para se casar com a ” e “a inveja das mulheres do órgão sexual masculino”.

Tal como as evidências históricas sobre o fato de Jesus ter existido não provam seus milagres, as descobertas neuropsicológicas sobre o inconsciente ainda não provaram as principais hipóteses psicanalíticas.

O fato de que a saúde mental de pessoas religiosas tende a ser (levemente) melhor não significa que suas crenças teológicas sejam verdadeiras.

Para ilustrar, consideremos o processo que Freud chamou de “pedra de fundação” da psicanálise: a repressão. Basicamente, ele acreditava que as lembranças doloridas de um trauma poderiam ser reprimidas no inconsciente – ou seja, elas seriam “banidas” para lá, tornando-se inacessíveis à consciência –, e estariam por trás do desenvolvimento de sintomas e neuroses.

No entanto, as evidências científicas parecem não apoiar essa tese. Um estudo conduzido pelo neurocientista francês Pierre Gagnepain e colegas, em 2014, indica que lembranças indesejáveis suprimidas têm pouco poder sobre nós. Os autores da pesquisa discutem a necessidade de “reexaminar o pressuposto de que a supressão” produz memórias “inconscientes que prejudicam a saúde mental”.

Alguém poderia argumentar que a carência de validação científica das teses da psicanálise não justifica colocá-la no balaio das pseudociências – afinal, as evidências ainda podem chegar. Outros poderiam reunir um punhado de estudos que parecem indicar sua eficácia terapêutica. Por , seria também possível alegar que os psicanalistas não estão reivindicando a cientificidade de sua prática. Considerando tudo isso, não seria injusta a acusação de que a doutrina fundada por Freud é pseudocientífica? Antes de responder a essas objeções, precisamos recorrer rapidamente à filosofia.

Segundo o filósofo Sven Hansson, pseudociências são doutrinas que, embora careçam de confiabilidade, são defendidas como se fossem confiáveis. Em outras palavras, os principais proponentes de uma pseudociência tentam passar a impressão de que seu sistema de ideias tem credibilidade e/ou é apoiado por boas evidências. E muitos deles fazem isso sem alegar que sua doutrina é científica – e sem a intenção de enganar os incautos.

À luz dessa perspectiva, não importa se nem todos os psicanalistas reivindicam o status de ciência para a psicanálise. Em vez disso, poderíamos avaliar como eles costumam se posicionar na mídia, nas universidades e em seus livros. Se a doutrina é apresentada como se descrevesse confiavelmente o funcionamento da mente, isso basta para que ela seja avaliada como científica ou pseudocientífica. E o fato é que, desde o nascimento da psicanálise, essa atitude presunçosa vem sendo identificada – e criticada.

Ainda assim, é possível que a terapia psicanalítica funcione, seja eficaz. E, havendo estudos que demonstrem isso, a confiança que os psicanalistas têm em sua prática seria

cientificamente justificada.

Infelizmente, essa não é a avaliação de muitos especialistas. Embora existam pesquisas sugestivas de que esse tipo de psicoterapia funciona – para alguns tipos de caso, pelo menos –, elas seriam relativamente escassas e de baixa qualidade metodológica. Isso não é nada trivial. Resultados positivos gerados por métodos enviesados são como alterações de peso aferidas por balanças desreguladas. Isso significa que, no máximo, os achados acerca da eficácia da psicanálise são inconclusivos.

 Mesmo que o cenário fosse outro, bem-estar e melhorias comportamentais gerados por uma prática não garantem sua cientificidade. Consideremos o caso da fé. O fato de que a saúde mental de pessoas mais religiosas tende a ser (levemente) melhor não significa que suas crenças teológicas sejam verdadeiras.

Muitas religiões podem melhorar a vida social dos fiéis e dar a eles respostas reconfortantes às suas questões existenciais. Isso pode até fazer bem, mas não faz com que as doutrinas religiosas sejam científicas, confiáveis. De forma análoga, é possível que os presumíveis benefícios da terapia psicanalítica não tenham muito a ver com suas doutrinas subjacentes, e sim, por exemplo, com as características pessoais dos terapeutas.

Obviamente, não podemos desprezar o valor terapêutico das habilidades interpessoais de quem trabalha com saúde mental. Na verdade, isso é um pré-requisito importante para o sucesso de qualquer tipo de psicoterapia.

Mas, quando a tarefa é examinar a cientificidade de uma doutrina, filósofos e demais teóricos precisam descobrir se as afirmações que a constituem são confiáveis. Afinal, existem boas evidências de que os sonhos são realizações de desejos inconscientes? De que a cura depende da recordação de traumas esquecidos? De que ego, id e superego são componentes fundamentais da mente humana?

Enquanto os pesquisadores de orientação psicanalítica não passarem a colocar suas hipóteses à prova, a credibilidade da psicanálise continuará declinando. Graças aos avanços recentes nas neurociências e na psicologia experimental, já não é razoável alegar que os processos inconscientes não são passíveis de mensuração e testagem. Aparentemente, os psicanalistas têm resistido à oportunidade de avaliar rigorosamente as teses controversas em que depositam tanta confiança. Em grande medida, isso resume por que a psicanálise é frequentemente classificada como uma pseudociência.

Referências: artigo “Is Longer-Term Psychodynamic Psychotherapy More Effective than Shorter-Term Therapies? Review and Critique of the Evidence”; artigo “Suppressing unwanted memories reduces their unconscious influence via targeted cortical inhibition”; artigo “Does Repression Exist? Memory, Pathogenic, Unconscious and Clinical Evidence”; Definindo pseudociência e ciência”; livro Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas.

Fonte: abril

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