Nos últimos dias de fevereiro, o Wall Street Journal fez uma revelação impactante: o US Department of Energy produziu um relatório confidencial, entregue à Casa Branca e a alguns congressistas, no qual afirma que a origem mais provável do Sars-CoV-2 é um vazamento de laboratório, no Instituto de Virologia de Wuhan (WIV). E não, como sempre afirmou a versão “oficial”, animais selvagens vendidos num mercado dessa cidade.
O DoE tem sob sua tutela os principais laboratórios americanos, como o Lawrence Livermore e o Los Alamos (que inventaram a bomba atômica), então a notícia fez barulho. Logo em seguida, o FBI se manifestou, afirmando que o laboratório de Wuhan é a origem “mais provável” do coronavírus.
A hipótese de que ele tenha surgido no WIV não é nova: ganhou força em 2021, com a revelação de coisas que podem incriminar o instituto.
Explicamos todas na reportagem “A origem do vírus”, que você pode ler no site da Super, mas resumindo: o WIV fazia pesquisas perigosas, inseriu a proteína spike (a mesma do Sars-CoV-2) num coronavírus de morcego para que ele se tornasse capaz de infectar células humanas (1), e seus cientistas não seguiam normas internacionais – mexiam com coronavírus em laboratórios BSL-2 (nível de biossegurança 2), o que é totalmente inadequado: somente os BSL-4, que possuem medidas extremas de segurança, podem ser usados para estudar vírus que são letais e se espalham pelo ar.
Talvez você já saiba disso. O que você não sabe é que, paralelamente à polêmica envolvendo o WIV, cientistas de todo o mundo continuam realizando experiências arriscadas. Em outubro de 2022, pesquisadores da Universidade de Boston criaram uma nova variante do Sars-CoV-2, misturando pedaços da Ômicron e da variante original, de Wuhan.
Sabe qual foi o resultado? “Em ratos [da linhagem] K18-hACE2, nos quais a Ômicron causa infecção leve, não fatal, a Ômicron com proteína S provoca doença severa, com taxa de mortalidade de 80%”, afirma o estudo (2).
Oitenta. Por. Cento. A notícia causou escândalo, e os cientistas saíram dizendo que a imprensa estava exagerando, que em humanos a mortalidade não necessariamente seria 80%, que a experiência foi feita num laboratório seguro etc. Mas as explicações não convenceram. E não se trata de um caso isolado.
Em agosto de 2021, pesquisadores italianos colheram anticorpos de uma pessoa curada da Covid, e puseram em contato com o Sars-CoV-2. Repetiram isso várias e várias vezes. “O plasma [sanguíneo] neutralizou totalmente o vírus por sete passagens, mas, após 45 dias […] houve escape parcial”, relata o estudo (3).
Os cientistas continuaram até que, no dia 80, surgiu “uma variante completamente resistente”. Haviam criado um Sars-CoV-2 invulnerável aos anticorpos de quem já teve Covid – ou tomou a vacina. Pesquisas assim são rotina nos laboratórios. Sabe o Lawrence Livermore, citado no começo deste texto? Em 2013, seus cientistas alteraram o BCoV, um coronavírus bovino, para torná-lo capaz de infectar células humanas (4).
E a coisa não fica só nos coronavírus. Em outubro de 2022, quando a varíola dos macacos assustava o mundo, o NIAID (Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas), do governo americano, anunciou que iria criar uma nova variante do MPXV, o vírus que causa essa doença, fundindo uma cepa mais agressiva, de 2003, com a que se espalhava pelo planeta naquele momento.
Se qualquer um desses vírus escapasse, poderia começar uma nova pandemia. E os vazamentos são mais comuns do que se imagina. A ONG americana ProPublica teve acesso aos registros da Universidade da Carolina do Norte (que colaborava com o Instituto de Wuhan antes da pandemia), e descobriu que, entre 2015 e 2020, os laboratórios da instituição americana tiveram 28 incidentes de segurança.
Num deles, em fevereiro de 2016, um rato infectado com um coronavírus experimental mordeu uma cientista. O vírus se mostrou inofensivo; a pesquisadora não adoeceu. Ainda bem, pois ela não ficou em quarentena: a única medida de segurança foi pedir que usasse máscara cirúrgica (não era nem uma N95) no trabalho durante 10 dias.
Esse tipo de pesquisa, na qual um vírus é modificado para adquirir novas capacidades, se chama “ganho de função”. Em 2014, no governo Obama, os EUA baniram os estudos do tipo, por considerá-los perigosos – mas eles foram liberados em 2017, na gestão Trump.
Em janeiro deste ano, o National Science Advisory Board for Biosecurity (NSABB), um grupo de cientistas que aconselha a Casa Branca, propôs regras mais duras para as pesquisas com vírus (5), que passariam a ser fiscalizadas pelo ministério da saúde dos EUA.
O governo Biden ainda não recebeu a versão final do documento, mas já afirmou que os estudos de ganho de função vão continuar. Em fevereiro, 20 pesquisadores americanos criaram o projeto Protect Our Future, para convencer as autoridades a mudar de ideia.
Cinco deles (incluindo o líder, o biólogo Richard Ebright) eram parte do grupo que conseguiu parar as experiências de ganho de função em 2014. Segundo eles, é preciso banir os “estudos irresponsáveis com patógenos”, que não trazem nenhum benefício real.
Você deve estar se perguntando: de fato, qual a utilidade de criar vírus mais perigosos? Afinal, se um novo surgir naturalmente, com certeza ele vai ser diferente dos inventados em laboratório. Então por que cientistas continuam fazendo pesquisas do tipo? A resposta está no estatuto (6) do próprio NSABB. Nele é dito que o grupo orienta o governo dos EUA sobre “pesquisas de uso dual”. Sabe o que é uso dual? É algo que tem aplicação civil e militar.
Sim, militar. As pesquisas perigosas continuam porque, embora os EUA e mais 184 países tenham assinado um tratado banindo as armas biológicas, em 1972, o trabalho de laboratório nunca parou. A diferença é que hoje, oficialmente, ele é defensivo – o objetivo é prever quais vírus outros países poderão inventar, e desenvolver curas.
Mas por que isso seria necessário, se as armas biológicas foram banidas? Prevenção contra eventuais ataques bioterroristas, talvez. Ou o temor de que, secretamente, algumas nações continuem tocando projetos do tipo ofensivo, violando o tratado. Isso porque, se comparado aos acordos que proíbem ou regulam armas químicas e nucleares, o das armas biológicas tem uma diferença crucial: ele não prevê nenhum tipo de fiscalização.
Fontes (1) A SARS-like cluster of circulating bat coronaviruses shows potential for human emergence. S Zhengli, R Baric e outros, 2015; (2) Role of spike in the pathogenic and antigenic behavior of SARS-CoV-2 BA.1 Omicron. M Saeed e outros, 2022. (3) SARS-CoV-2 escape from a highly neutralizing COVID-19 convalescent plasma. E Andreano e outros, 2021. (4) The Role of Viral Population Diversity in Adaptation of Bovine Coronavirus to New Host Environments. M Borucki e outros, 2013; (5) Proposed Biosecurity Oversight Framework for the Future of Science. NSABB, 2023; (6) Charter – National Science Advisory Board for Biosecurity. HHS, 2018.
Fonte: abril