Sophia @princesinhamt
Ciência & Saúde

A incrível nova narrativa dos neandertais: uma revelação surpreendente sobre nossos ancestrais

2024 word2
Grupo do Whatsapp Cuiabá

P

Por quase um século, quando alguém pronunciava a palavra “neandertal”, a imagem que vinha à cabeça da maioria das pessoas era muito semelhante à que apareceu pela primeira vez em um desenho publicado em 1909, no semanário francês L’Illustration.

Assinada pelo pintor tcheco Frantisek Kupka, que recebeu consultoria do paleontólogo francês Marcelin Boule para o trabalho, a gravura mostra uma criatura que mais parece um chimpanzé bípede. As pernas curtas estão arqueadas; os dentes, arreganhados; um dos punhos está cerrado, enquanto a outra mão segura uma espécie de porrete.

Dá para ver um crânio no chão de pedra, a poucos metros do neandertal. Não há quase nada de humano nesse sujeito. Boule e Kupka provavelmente iriam querer arrancar os cabelos se soubessem, como a ciência descobriria muito tempo depois, que a grande maioria das pessoas carrega um pouco de DNA desse truculento homem-macaco.

E a grande questão, claro, é que de homem-macaco os neandertais não tinham nada. Depois de passarem tanto tempo levando fama de brutamontes das cavernas, os membros da espécie Homo neanderthalensis finalmente estão sendo retratados com um pouco mais de empatia e consideração.

Isso graças a uma avalanche de novas pesquisas, que têm encurtado cada vez mais o suposto abismo que separaria os seres humanos atuais dessa população da Era do Gelo.

Está cada vez mais claro que, em muitos aspectos de seu comportamento e capacidades mentais, os neandertais eram basicamente gente como a gente, apesar de uma separação evolutiva de algumas centenas de milhares de anos. Foram alguns detalhes sutis (não um extermínio, como se acreditava) que os fizeram desaparecer.

E não sem antes que acontecessem diversos episódios de miscigenação entre as espécies, fazendo com que fragmentos do genoma deles continuem se multiplicando nos corpos humanos até hoje.

 

A

A primeira coisa que você precisa saber para entender a trajetória dos neandertais é que, no contexto geral da evolução humana, a separação entre o nosso ramo da árvore genealógica e o deles é muito recente. Tudo indica que os primeiros hominínios surgiram entre 6 e 7 milhões de anos atrás (o termo hominídeos, mais tradicional, engloba também chimpanzés e outros grandes macacos).

Durante a maior parte do tempo, os hominínios viveram na África. Há menos de 2 milhões de anos, quando já existia o gênero Homo, ao qual pertence a nossa espécie, alguns desses ancestrais começaram a se espalhar para fora do continente africano, colonizando boa parte do Velho Mundo, chegando à Europa e à Ásia. Esse processo iria se repetir pelo menos mais duas vezes.

Na segunda grande onda migratória dos hominínios, uma espécie que os especialistas chamam de Homo heidelbergensis se dividiu em dois grandes ramos, um africano e outro “imigrante”.

A hipótese mais aceita hoje é que os H. heidelbergensis que ficaram na África acabariam dando origem ao chamado Homo sapiens anatomicamente moderno (ou seja, nós), enquanto os que se multiplicaram na Europa seriam os tataravôs dos neandertais.

Estimativas feitas com base em fósseis e no padrão de mutações das “letras” químicas do DNA indicam que essa bifurcação (ou “divergência”, como dizem os biólogos) dos ramos da árvore genealógica teria acontecido entre 500 mil e 800 mil anos atrás. Em escala evolutiva, é bem pouco tempo.

E não é só isso que nos aproxima dos neandertais. Antes da separação das linhagens, o ancestral comum entre as duas espécies já tinha desenvolvido um cérebro quase tão grande quanto o que temos hoje.

Já havia dominado o uso do fogo, a confecção de instrumentos de pedra relativamente complexos e provavelmente alguma forma de fabricação de vestuário, levando em conta que o H. heidelbergensis já tinha colonizado regiões de clima temperado. (Isso porque esses hominínios também já não eram mais peludos como os chimpanzés. Desculpa aí, seu Kupka.)

Não é pouca coisa – e tanto os primeiros H. sapiens quanto os neandertais mais antigos carregavam essa mesma bagagem quando começaram a trilhar caminhos separados.

Pintura rupestre representando as espécies Homo sapiens e Homo neanderthalensis em conflito.
Tudo apontava para uma substituição abrupta – em que os sapiens teriam dizimado os neandertais. (Vinicius Capiotti/Superinteressante)

Mas, se a separação é assim tão recente, e se as pesquisas sobre o nosso genoma demonstraram que neandertais e H. sapiens podiam gerar descendentes férteis (algo que normalmente não é possível em cruzamentos interespécies), por que diabos se consolidou a ideia de que são duas espécies diferentes?

Grosso modo, porque a separação foi longa o suficiente para criar diferenças genéticas marcantes entre essas duas populações de hominínios, e também houve um isolamento reprodutivo considerável, com centenas de milhares de anos sem cruzamentos entre elas.

Coisas assim acontecem o tempo todo na natureza. Veja, por exemplo, o caso dos ursos-polares e dos ursos-pardos. Batendo o olho, eles parecem bem diferentes. São duas espécies separadas. Mas podem cruzar entre si e gerar descendentes férteis, ainda que isso não seja comum.

E tudo indica que, assim como os neandertais e o H. sapiens, essas duas espécies de urso se separaram há relativamente pouco tempo (cerca de 500 mil anos). Ou seja: duas populações de animais podem ser de espécies separadas, e mesmo assim manter algum grau de vínculo genético – em certos casos, o suficiente para gerar descendentes férteis.

Vários elementos explicam por que a reputação dos neandertais só começou a melhorar para valer nos últimos anos. O primeiro é a visão um tanto distorcida sobre a origem do próprio H. sapiens que prevaleceu até pouco tempo atrás.

E isso não dependia só do preconceito do começo do século 20 – alguns estudos bem mais modernos também pareciam retratar o H. neanderthalensis como uma espécie “obsoleta”, muito inferior aos seres humanos de anatomia moderna no que diz respeito à inteligência e complexidade do comportamento. Por um longo período, os neandertais foram considerados ancestrais dos sapiens.

Mas a partir dos anos 1980, quando os estudos sobre o genoma humano começaram a decolar, ganhou força a hipótese de que a nossa espécie teria tido uma origem recente, na África.

Os dados de DNA foram combinados com análises de fósseis, que mostraram duas coisas: 1) era fácil diferenciar esqueletos antigos de neandertais e de H. sapiens, pois eles tinham anatomia bem diferente um do outro; 2) não havia qualquer indício de que, na Europa e na Ásia, os neandertais tivessem dado origem aos humanos modernos.

Em vez disso, parecia ter acontecido uma substituição meio abrupta de um grupo pelo outro. Tudo indicava que nossos ancestrais basicamente tinham varrido os neandertais do Velho Mundo, sem deixar vestígios.

Quando pesquisadores como o sueco Svante Pääbo começaram a dominar técnicas para obter fragmentos de DNA neandertal, nos anos 1990, essa tese ganhou mais força.

Pääbo, que hoje trabalha no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, conseguiu “ler” trechos do mtDNA (DNA mitocondrial) dos neandertais.

Esse tipo de material genético só está presente nas mitocôndrias, as usinas de energia das células, e é transmitido apenas pelo lado materno. Ou seja, o seu mtDNA é igual (ou quase igual, caso venha a sofrer mutações) ao da sua mãe.

Acontece que o mtDNA tipicamente neandertal não aparecia em nenhuma pessoa viva hoje – um dado que ainda se mantém. Aí o especialista sueco e seus colegas propuseram, com base nisso, que os neandertais não tinham deixado nenhum descendente.

Além de todos esses dados, os estudos sobre a cultura dos primeiros H. sapiens europeus pareciam indicar que eles estavam anos-luz à frente dos neandertais em quase todos os aspectos.

Enquanto os neandertais pareciam ser estritamente carnívoros caçadores de grandes animais, os primeiros humanos modernos teriam uma dieta muito mais diversificada, capturando pequenos mamíferos, aves, peixes, coletando ovos e vegetais.

As ferramentas dos H. sapiens seriam bem mais sofisticadas, incorporando várias pequenas lâminas de pedra e também aproveitando matérias-primas como osso, marfim, conchas e madeira.

E, o que talvez fosse o mais importante, só os humanos de anatomia moderna teriam desenvolvido formas de arte e simbolismo, fazendo pinturas deslumbrantes em cavernas, esculpindo pequenas estatuetas, marcando a rocha com o contorno de suas mãos, enfeitando-se com pintura corporal e colares e criando algo muito parecido com os rituais xamânicos dos povos indígenas de hoje.

Surgiu a hipótese de que tudo isso teria aparecido de forma relativamente rápida na linhagem da nossa espécie, numa espécie de “Big Bang cognitivo” há cerca de 50 mil anos.

Segundo essa ideia, algum tipo de alteração genética teria reorganizado o cérebro dos H. sapiens – enquanto os neandertais, sem um salto evolutivo similar, teriam ficado para trás.

Um crânio neandertal sendo descoberto.
O cérebro neandertal aparentemente tinha habilidades linguísticas. Mas o grau de sofisticação delas ainda é incerto. (Vinicius Capiotti/Superinteressante)

Muito mais criativos e versáteis, os H. sapiens teriam empurrado os neandertais rumo à extinção, competindo por recursos com eles ou mesmo por meio do confronto direto.

E isso, de acordo com a tese, explicaria a total ausência de mtDNA neandertal nas pessoas de hoje. No fundo, diziam os defensores da ideia, os neandertais seriam só uma espécie particularmente versátil e habilidosa de primata – e apenas os H. sapiens poderiam ser considerados plenamente humanos.

 

M

Mas alguns pesquisadores nunca engoliram esse contraste tão forte entre as duas espécies. E, ironicamente, o jogo começou a virar graças, em parte, aos estudos sobre paleogenética – os mesmos que, de início, pareciam ter lançado uma pá de cal sobre a reputação dos neandertais.

Ocorre que o DNA mitocondrial é, na verdade, um pedaço minúsculo de material genético perto do tamanho do genoma humano propriamente dito, que fica armazenado no núcleo das células.

O genoma inteiro tem 3 bilhões de pares de “letras” de DNA, enquanto o mtDNA soma apenas 16.500 pares (mais ou menos o equivalente, em caracteres, a uma matéria de capa da Super). Isso significa que a informação presente no mtDNA conta uma parte muito pequena da história evolutiva de uma espécie.

Com o avanço da tecnologia de obtenção e análise de DNA antigo, a equipe de Svante Pääbo, ao lado de colegas americanos, finalmente conseguiu montar o primeiro rascunho (1) do genoma neandertal completo em 2010.

E aí veio a surpresa: a herança genética neandertal estava presente, de forma significativa, nas populações modernas de origem não africana – ou seja, todos os europeus, asiáticos, nativos da Oceania e das Américas carregam um pouco de DNA neandertal.

As estimativas mais recentes indicam que essa contribuição gire em torno de 2% do DNA humano moderno, com alguma variação entre grupos – acredita-se que a “porcentagem neandertal” seja um tiquinho maior nos povos do leste da Ásia, por exemplo.

Outro estudo, feito em 2020, também mostrou que mesmo grupos africanos atuais, de países como Quênia, Gâmbia e Nigéria, carregam cerca de 0,5% de DNA neandertal (2).

Provavelmente, devido a fatores como migrações “de retorno”, com grupos da Eurásia que voltaram para a África, ao longo das últimas dezenas de milhares de anos.

A análise genética dos neandertais e sua comparação com o DNA dos humanos modernos sugerem que as duas espécies cruzaram diversas vezes, mas nem sempre com os mesmos resultados.

Os encontros mais antigos teriam ocorrido cerca de 70 mil anos atrás, no atual Oriente Médio – antes de o Homo sapiens começar sua grande dispersão pelo mundo.

É por isso que tantas etnias humanas carregam um pouco de DNA neandertal: ele foi inserido no nosso genoma antes mesmo que os grupos de sapiens se separassem e começassem a formar povos distintos. 

Os restos mortais de um Homo sapiens que viveu há cerca de 40 mil anos, na atual Romênia, revelaram que ele tinha 10% de sequências genéticas vindas dos neandertais. É bem mais do que hoje, e compatível com um “evento de hibridização” de quatro a seis gerações antes – ou seja, o sujeito pode ter tido um bisavô ou tataravô que era H. neanderthalensis.

Também houve transferência genética na direção inversa, de nós para eles. Outro estudo, de 2020, revelou uma miscigenação que teria levado o cromossomo Y (que define a masculinidade e é transferido de pai para filho) de H. sapiens muito antigos para a população neandertal cerca de 100 mil anos atrás (3).

Isso significa que sapiens machos começaram a ter filhos com neandertais fêmeas. E aconteceu bastante – tanto que, a partir daí, o cromossomo Y dos Homo sapiens se tornou predominante entre as populações neandertais.

Mas a troca genética entre as duas espécies nem sempre foi tão fluida. Há alguns indícios de que, no começo, os dois genomas não “conversavam” com facilidade – e, como consequência, os híbridos de sapiens e neandertais eram pouco férteis. Isso, na verdade, é o esperado, porque o longo tempo de separação faz com que cada espécie adquira um padrão próprio de mutações, que nunca vai bater totalmente com o da outra.

Além disso, alguns estudos indicam que certos problemas genéticos dos humanos atuais, como a propensão a desenvolver anemia ou doenças autoimunes como a artrite, podem ser o efeito de fragmentos genéticos herdados dos neandertais [veja infográfico abaixo].

Mas nossa espécie também herdou deles coisas positivas, como alguma resistência natural a bactérias e fungos.

Cientistas do Instituto Pasteur e do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva mostraram, em dois estudos independentes (4), que os genes TLR1, TLR6 e TLR10, que conferem essa resistência, são especialmente comuns em europeus e asiáticos – e, eis aqui o pulo do gato, batem com as versões encontradas no genoma neandertal.

Do ponto de vista evolutivo, isso faz todo o sentido. Como os neandertais já viviam na Eurásia por centenas de milhares de anos antes da chegada dos H. sapiens africanos, eles já tinham tido tempo de desenvolver defesas imunológicas contra os micróbios existentes por lá.

Quando as duas espécies passaram a conviver e se reproduzir entre si, os descendentes herdavam essa proteção – a seleção natural favoreceu a miscigenação.

 

Imagem com ilustração de duas hélices ósseas de DNAs e parte em texto indicando um infográfico sobre herança genética dos neandertais.
(Vinicius Capiotti/Arte/Superinteressante)

Outro aspecto que nos aproxima dos neandertais diz respeito ao Big Bang cognitivo dos Homo sapiens (que citamos agora há pouco).

Essa suposta transformação explosiva de 50 mil anos atrás na verdade parece ter sido um processo muito mais lento, cujos primeiros sinais aparecem há mais de 100 mil  anos – quando os sapiens passam a adotar, aos poucos, comportamentos como o uso do mineral ocre para pintar o corpo, a produção de desenhos geométricos abstratos e a fabricação de colares feitos com conchas.

E há pistas cada vez mais fortes de que algo parecido também estava acontecendo, de forma independente, entre os neandertais europeus.

Algumas das mais importantes vêm do trabalho de João Zilhão, arqueólogo da Universidade de Lisboa e conhecido defensor da tese da complexidade neandertal (mesmo quando muita gente debochava deles).

Zilhão e seus colegas encontraram, em quatro sítios arqueológicos da Espanha, evidências de que os neandertais também faziam desenhos geométricos e adornavam seu corpo com pinturas e colares, entre 115 mil e 65 mil anos atrás.

Essas datas são muito anteriores à chegada dos H. sapiens à Europa Ocidental, algo que só foi ocorrer cerca de 20 mil anos depois. Ou seja: eles não estavam nos imitando. Criaram essas coisas por conta própria.

Os achados incluem conchinhas perfuradas (para formar algum tipo de penduricalho), desenhos geométricos que lembram uma escada e o contorno de uma mão feito com tinta.

“As primeiras formas de representação material de símbolos talvez tenham sido de tipo abstrato ou geométrico”, afirma Zilhão. Os neandertais também dominavam técnicas relativamente sofisticadas, como a produção de piche com restrição de oxigênio [veja infográfico abaixo].

Imagem com ilustração de algumas ferramentas desenvolvidas pelos neandertais, e parte em texto indicando um infográfico sobre a química neandertal (piche).
(Vinicius Capiotti/Arte/Superinteressante)

O pesquisador português defende a tese de que o H. neanderthalensis tinha uma capacidade mais ou menos equivalente à nossa de criar uma linguagem complexa, a qual serviria, inclusive, para comunicar os significados dos desenhos que fazia.

De fato, até onde sabemos, a anatomia e o cérebro deles não tinham nenhuma “peça faltando” para que isso fosse possível. Os neandertais possuíam um gene, chamado FOXP2, que também está presente nos humanos modernos – e está relacionado ao surgimento de capacidades linguísticas.

Mas sua efetiva habilidade verbal ainda é incerta – alguns pesquisadores defendem a tese de que eles tinham uma “protolinguagem”, muito mais primitiva que a dos sapiens.

Já no que diz respeito à alimentação, a distância parece ser bem menor: uma série de estudos tem demonstrado que a dieta dos neandertais podia ser tão diversificada e nutritiva quanto a dos sapiens, inclusive incorporando elementos marinhos e fluviais, como peixes, pequenos cetáceos (golfinhos e toninhas) e focas.

Dados publicados no ano passado sobre Shanidar, um sítio arqueológico do Iraque, revelaram (5) que havia até uma combinação de leguminosas e gramíneas na dieta dos neandertais de 70 mil anos atrás.

Seria algo como comer trigo com lentilha, ou arroz com feijão. E, claro, cozinhando tudo isso – já está confirmado que os neandertais eram tão capazes de usar o fogo para cozinhar e se aquecer quanto nós.

Também há boas razões para acreditar que esse “empate técnico” entre os neandertais e a nossa espécie se estenda a um comportamento mais complexo: a forma de encarar a morte.

 

D

Durante muito tempo, os céticos apontavam a falta de evidências claras de sepultamentos neandertais como um sinal de que eles não tinham uma relação com seus mortos semelhante à nossa.

Esse argumento, no entanto, ignora o fato de que, pelo menos até uns 20 mil anos atrás, enterrar os mortos parece ter sido um comportamento relativamente incomum mesmo no caso do Homo sapiens.

Além disso, ainda hoje a diversidade de procedimentos adotados após a morte de um ente querido nas culturas mundo afora é enorme, aponta a arqueóloga britânica Rebecca Wragg Sykes, autora do livro Kindred (“Aparentados”; não lançado no Brasil), que sintetiza os novos conhecimentos sobre os neandertais.

Sykes afirma que alguns cadáveres de neandertais, como bebês cujo esqueleto foi muito bem preservado, provavelmente foram enterrados.

Outros corpos da espécie, no entanto, foram cuidadosamente desmembrados com instrumentos de pedra, mas não consumidos como carne, além de receberem marcas misteriosas que não têm a ver com o uso culinário. Segundo ela, isso poderia indicar a presença de rituais funerários complexos.

Sykes também destaca o respeito que os neandertais parecem ter dedicado aos membros mais frágeis de suas comunidades. Existem vários exemplos de indivíduos idosos, ou com deficiências físicas e talvez cognitivas severas, os quais, mesmo assim, sobreviveram durante anos. É um sinal claro de que recebiam alimentação e cuidados por parte de neandertais mais jovens e saudáveis.

Apesar de tantas semelhanças, o fato é que, a partir de 40 mil anos atrás, os neandertais deixam de existir. Os fatores que levaram a isso ainda estão longe de ser elucidados.

Mas o que já pode ser descartado é algum tipo de grande guerra genocida entre as espécies. Primeiro, nem neandertais nem H. sapiens formavam dois grandes blocos coesos.

Havia uma infinidade de pequenos grupos de caçadores-coletores, cada um tentando sobreviver à sua própria maneira. Além disso, existe um único caso com registro fóssil – ainda não totalmente comprovado – de um neandertal que talvez tenha sido atacado por um humano moderno.

O desaparecimento dos neandertais pode ter acontecido não por violência, mas por outros fatores – e há pistas disso nas análises de DNA.

“Esses estudos mostram de maneira bastante convincente que, de forma geral, os neandertais viviam em populações menores, com menos diversidade genética [que as dos sapiens]”, diz Igor Djakovic, especialista da Universidade de Leiden, na Holanda. Essa menor diversidade pode ter deixado os neandertais mais vulneráveis a novos patógenos – e contribuído para dizimá-los.

Djakovic é autor de um estudo (6), publicado no ano passado, que apontou mais uma prova da coexistência prolongada entre sapiens e neandertais. O cientista analisou fósseis das duas espécies, encontrados na França e na Espanha, e mediu a quantidade de carbono-14 presente neles.

Esse isótopo do carbono decai naturalmente com o tempo, e funciona como uma espécie de relógio: medindo a quantidade de C-14 presente nos fósseis, você consegue determinar de qual época eles são. O teste mostrou que sapiens e neandertais viveram ao mesmo tempo nas duas regiões analisadas, e por um longo período: até 2.900 anos.

Não há nenhum sinal de que os neandertais tenham sido extintos por uma grande ofensiva sapiens. É mais provável que pequenas diferenças na capacidade de sobreviver a extremos de clima, a variabilidade genética e, talvez, uma habilidade maior em montar conexões de longa distância entre populações e se reproduzir, tenham pesado a nosso favor.

Pintura rupestre de grupos de pessoas em comunidade, em volta de uma fogueira.
As duas espécies tiveram os primeiros filhos em conjunto 70 mil anos atrás, na região do atual Oriente Médio. (Vinicius Capiotti/Superinteressante)

Para João Zilhão, ficar obcecado com os “defeitos” que teriam levado ao fim dos neandertais – afinal, qual era o calcanhar-de-aquiles deles? – não passa de preconceito.

“Também desapareceram os vikings da Groenlândia, alguns nativos da Terra do Fogo, para não falar do que os madeireiros e garimpeiros da Amazônia vêm fazendo com as populações indígenas”, compara o pesquisador português.

“Isso aconteceu porque esses povos eram ou são cognitivamente inferiores?”, questiona, de forma retórica, o pesquisador. É obvio que não. Não é essa a chave para entender a história, e o destino, dos neandertais.

A ciência ainda fará muitas descobertas sobre eles. Não todas, claro: certas coisas só seriam reveladas pela observação direta dos hábitos, da cultura e da inteligência de neandertais vivos.

Mas, se for para apostar, uma hipótese parece segura: seria possível reconhecer muito do que prezamos como humano, só nosso, também nos rostos deles. 

 

***

Os “minicérebros” neandertais

Cientistas cultivaram e modificaram neurônios humanos para simular os da outra espécie.

Os minicérebros, ou organoides cerebrais, são agrupamentos celulares cultivados em laboratório. Você pega células-tronco, que têm a capacidade de se tornar qualquer tipo de célula, e as induz a se transformarem em neurônios (ou em outras células cerebrais, como as gliais, que fornecem nutrientes aos neurônios).

A técnica serve para estudar o desenvolvimento e a interação das estruturas cerebrais. Em 2021, a equipe do biólogo brasileiro Alyson Muotri, que trabalha na Universidade da Califórnia (San Diego), deu um passo além: criou minicérebros e alterou um gene de suas células, o NOVA1 – para que ele ficasse igual à versão presente nos neandertais.

Isso teve consequências profundas: a edição do NOVA1 acabou desencadeando mudanças na atividade de 277 outros genes. O organoide neandertal cresceu menos, e em ritmo mais lento, do que os minicérebros feitos com células humanas – indicando que determinadas mutações no NOVA1 (que nós possuímos, mas os neandertais não) podem estar diretamente relacionadas à evolução cognitiva do Homo sapiens.

***

Fontes (1) A draft sequence of the Neandertal genome. S Paabo e outros, 2010. (2) Identifying and Interpreting Apparent Neanderthal Ancestry in African Individuals. J Akey e outros, 2020.  (3) The evolutionary history of Neanderthal and Denisovan Y chromosomes. M Petr e outros, 2020. (4) Genomic Signatures of Selective Pressures and Introgression from Archaic Hominins at Human Innate Immunity Genes. M Deschamps e outros, 2016. Introgression of Neandertal- and Denisovan-like Haplotypes Contributes to Adaptive Variation in Human Toll-like Receptors. J Kelso e outros, 2016.

 (5) Cooking in caves: Palaeolithic carbonised plant food remains from Franchthi and Shanidar. C Kabucku e outros, 2022. (6) Optimal linear estimation models predict 1400–2900 years of overlap between Homo sapiens and Neandertals prior to their disappearance from France and northern Spain. I Djokovic e outros, 2022.

Fonte: abril

Sobre o autor

Avatar de Redação

Redação

Estamos empenhados em estabelecer uma comunidade ativa e solidária que possa impulsionar mudanças positivas na sociedade.