Louvando os tempos em que morou na Cidade Luz, durante o frenético período que ingressou na história como os loucos anos 20, o escritor americano Ernest Hemingway (1889-1961) escreveu a um amigo: “Se na juventude você teve a sorte de viver em Paris, a lembrança o acompanhará pelo resto da vida”, dizia o autor de Paris é uma Festa, que ali conviveu com gênios do século XX que frutificaram na ebulição dos cafés. Nesse espaço de tempo, vielas e bulevares abrigaram os Jogos Olímpicos de 1924, uma gigantesca empreitada que envolveu vultosos investimentos em infraestrutura, inventou o conceito de vila olímpica e deixou aos parisienses um bem-vindo legado. Já tinha ocorrido com outros megaeventos, como a Exposição Universal de 1889, que celebrou o centenário da Revolução Francesa e, de quebra, plantou no cenário a Torre Eiffel, à época um controverso monumento pensado para durar uns meses e que se converteria no maior de todos os cartões-postais.
Agora, com os preparativos para a Olimpíada de 2024 a toda, o que se vê é um pontilhado de canteiros de obras que, em seu conjunto, ostentam a ambição de pôr de pé uma festa global com os mais belos cenários e sustentabilidade máxima, inclusive em um quesito que já deu dor de cabeça a muitas cidades-sede: o caixa olímpico. Quase todos os grandes ícones parisienses estão sob tapumes ou à espera deles — a Catedral de Notre-Dame, que depois de engolfada pelas chamas estará com a estrutura externa recauchutada a tempo (mas não seu interior), o Arco do Triunfo e a torre.
Dentro d’água, o empenho é para tornar o Sena, em torno do qual a cidade brotou, um rio 100% balneável, onde se poderá dar um mergulhinho sob a moldura de monumentos que promovem uma imersão na história. Até os anos 1970, Paris não possuía nem esgoto tratado, e a sujeira seguia aquele curso — situação que inspira iniciativas pró-despoluição desde 1989, quando o então prefeito Jacques Chirac prometeu que, dali a três anos, estaria ele próprio dando braçadas por lá. Não aconteceu. Para os Jogos, 1,5 bilhão de dólares estão sendo depositados em um novo projeto que consiste na construção de um reservatório no subsolo com capacidade para armazenar milhões de litros de águas pluviais, fonte de contaminação que o antiquado sistema de esgotos da capital francesa não consegue absorver. “A água já está realmente boa para nadar”, garante o engenheiro Dan Angelescu, CEO da Fluidion, empresa que faz o monitoramento. Boa notícia para os atletas de triatlo e maratona aquática, que competirão sob as mais belas pontes, e outros 10 000 que desfilarão a bordo de 160 barcos na cerimônia de abertura. Seus antecessores tiveram menos sorte: nos Jogos de 1900, nadaram em águas sujas e, nos de 1924, o banho no Sena era vetado.
A história mostra que as Olimpíadas acabam sendo um estímulo para acelerar melhorias que, não raro, criam bolor na gaveta dos gabinetes. A prefeita Anne Hidalgo está aproveitando o momento para turbinar seu plano de “Cidade de 15 minutos”, conceito urbanístico em que o morador não precisa percorrer mais do que isso para ter suas necessidades atendidas, a pé ou de bicicleta. Aos 100 quilômetros de ciclovia recentemente criados, 55 devem ser adicionados até as competições. As ruas também terão mais árvores, e calçadas serão ampliadas — inclusive na Champs-Elysées, avenida turística que os parisienses, escassos na área, consideram inóspita. A ideia é deixar para os locais um lugar mais verde, com menos carros e mais espaço para os andarilhos, incluindo uma vasta praça ao redor do hoje congestionado Arco do Triunfo. Não muito longe dali, o reformado Grand Palais receberá o torneio de esgrima, e a Torre Eiffel será palco do vôlei de praia. O símbolo-mor parisiense, que andava coberto por tom abronzeado, está ganhando o dourado de que seu criador, Gustave Eiffel, tanto gostava.
Paris oferece a vantagem de não precisar erguer um monte de novos prédios para abrigar os Jogos. “Cerca de 95% das estruturas que vão receber atletas e visitantes já existem”, afirma Corinne Menegaux, representante do Conselho de Turismo. No lugar de suntuosas obras que logo caem em desuso, o plano para os 4,8 bilhões de dólares de orçamento olímpico está concentrado em lapidar a quase irretocável paisagem, pano de fundo espetacular para apreciar o esporte em sua melhor forma. O pouco que foi construído do zero, caso da Vila Olímpica e da dos Atletas, em SaintDenis, a 7 quilômetros do centro, tem o objetivo de resgatar áreas degradadas. “Transformamos uma antiga zona industrial num moderno distrito conectado pelo rio, ciclovias e uma nova linha de metrô”, conta a VEJA Dominique Perrault, um dos idealizadores do projeto.
Ao mesmo tempo que uma Olimpíada pode abrir uma janela à cidade que a acolhe, ela impõe o desafio de não se converter em um dreno de dinheiro público. Em 1976, o fiasco financeiro dos Jogos de Montreal, no Canadá, virou uma cartilha do que não fazer — no final da festa, o endividamento do governo foi de 1,5 bilhão de dólares. Na vez de Los Angeles, em 1984, os cofres ficaram trancados e todo o dinheiro que afluiu para o evento veio de fonte privada, inaugurando uma era de patrocínios que se repetiria dali em diante. Em 2016, o Rio de Janeiro também não fechou a bilionária conta no azul, a ponto de a cidade precisar de um socorro na esfera federal para pagar o salário dos policiais que trabalharam nos Jogos. “Cidades e países que assumem a realização de uma Olimpíada têm o compromisso de gastar com sensatez e deixar um lugar melhor para viver”, enfatiza o urbanista Orlando Santos, da UFRJ. A ver como se desenrolam as ambiciosas promessas francesas. Por ora, Paris ainda é uma festa.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842
Fonte: Veja